TEXTO I
LUCÍOLA
CAPÍTULO II
A primeira vez que vim ao Rio de Janeiro foi em 1855.
Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância, o Dr. Sá, levou-me à festa da Glória; uma das poucas festas populares da corte. Conforme o costume, a grande romaria desfilando pela Rua da Lapa e ao longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro, e apinhava-se em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo.
Era ave-maria quando chegamos ao adro; perdida a esperança de romper a mole de gente que murava cada uma das portas da igreja, nos resignamos a gozar da fresca viração que vinha do mar, contemplando o delicioso panorama da baía e admirando ou criticando as devotas que também tinham chegado tarde e pareciam satisfeitas com a exibição de seus adornos.
Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e conhecidos, gozava eu da minha tranquila e independente obscuridade, sentado comodamente sobre a pequena muralha, e resolvido a estabelecer ali o meu observatório. Para um provinciano recém-chegado à corte, que melhor festa do que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da população desta grande cidade, com os seus vários matizes e infinitas gradações?
Todas as raças, desde o caucasiano sem mescla até o africano puro; todas as posições, desde as ilustrações da política, da fortuna ou do talento, até o proletário humilde e desconhecido; todas as profissões, desde o banqueiro até o mendigo; finalmente, todos os tipos grotescos da sociedade brasileira, desde a arrogante nulidade até a vil lisonja, desfilaram em face de mim, roçando a seda e a casimira pela baeta ou pelo algodão, misturando os perfumes delicados às impuras exalações, o fumo aromático do havana às acres baforadas do cigarro de palha.
— É uma festa filosófica essa festa da Glória! Aprendi mais naquela meia hora de observação do que nos cinco anos que acabava de esperdiçar em Olinda com uma prodigalidade verdadeiramente brasileira.
A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância. O vestido que o moldava era cinzento com orlas de veludo castanho e dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação doce melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar repousou calmo e sereno na mimosa aparição.
— Já vi esta moça! disse comigo. Mas onde?...
Ela pouco demorou-se na sua graciosa imobilidade e continuou lentamente o passeio interrompido. Meu companheiro cumprimentou-a com um gesto familiar; eu, com respeitosa cortesia, que me foi retribuída por uma imperceptível inclinação da fronte.
— Quem é esta senhora? perguntei a Sá.
A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatuidade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na difícil ciência das banalidades sociais.
— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la ?. . .
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.
Depois de algumas voltas descobrimos ao longe a ondulação do seu vestido, e fomos encontrá-la, retirada a um canto, distribuindo algumas pequenas moedas de prata à multidão de pobres que a cercava. Voltou-se confusa ouvindo Sá pronunciar o seu nome:
— Lúcia!
— Não há modos de livrar-se uma pessoa desta gente! São de uma impertinência! disse ela mostrando os pobres e esquivando-se aos seus agradecimentos.
Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com que um moço distinto se dirige a essas sultanas do ouro, e trocadas algumas palavras triviais, meu amigo perguntou-lhe:
— Vieste só?
— Em corpo e alma.
— E não tens companhia para a volta?
Ela fez um gesto negativo.
— Neste caso ofereço-te a minha, ou antes a nossa.
— Em qualquer outra ocasião aceitaria com muito prazer; hoje não posso.
— Já vejo que não foste franca!
— Não acredita?. .. Se eu viesse por passeio!
— E qual é o outro motivo que te pode trazer à festa da Glória?
— A senhora veio talvez por devoção? disse eu.
— A Lúcia devota!. . . Bem se vê que a não conheces.
— Um dia no ano não é muito! respondeu ela sorrindo.
— É sempre alguma coisa, repliquei.
Sá insistiu:
— Deixa-te disso; vem conosco.
— O senhor sabe que não é preciso rogar-me quando se trata de me divertir. Amanhã, qualquer dia, estou pronta. Esta noite, não!
— Decididamente há alguém que te espera.
— Ora! Faço mistério disto?
— Não é teu costume decerto.
— Portanto tenho o direito de ser acreditada. As aparências enganam tantas vezes! Não é verdade? disse voltando-se para mim com um sorriso.
(...)
ALENCAR, José de. Lucíola. 5 ed. São Paulo: FTD, 1999, p.14-18.
DISCUTINDO O TEXTO...
1- Comente sobre a descrições do cenário e costumes da época:
2- Há evidências de desigualdades sociais no fragmento em destaque?
3- Qual a descrição física, feita por Paulo, de Lúcia?
4- Comente sobre as reações de Paulo e do seu amigo Dr. Sá na apresentação de Lúcia e relacione à posição feminina da época.
5- Reescreva e comente o fragmento no qual Paulo se dá conta do contexto social em que Lúcia está inserida:
TEXTO II
No quarto capítulo, os protagonistas Lúcia e Paulo têm um encontro amoroso. De início, Lúcia se sente incomodada com a situação, o que deixa Paulo constrangido. Ele, nesse momento, ainda não entende os sentimentos da jovem, que, já apaixonada, sente-se mal por exercer seu papel de cortesã com o homem a quem ama. A partir deste fragmento do romance, serão trabalhadas duas habilidades de uso da língua.
LUCÍOLA
CAPÍTULO IV
(...)
Quando, porém, os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As palpitações eram bruscas e precipites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu roupão. Duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam.
É o coração, quando fortemente confrangido por violenta emoção, que espreme esse soro do sangue que gela e coalha.
Pungiu-me aquela aflição.
Retirei vivamente o braço; enquanto Lúcia sentava-se trêmula, afastei-me revoltado contra mim, e, ao mesmo tempo, indignado contra essa mulher que zombava da minha credulidade, e contra Sá que me iludira. Não sabia o que pensar; para fugir a uma posição que me incomodava horrivelmente, fui debruçar-me na janela.
Um instante depois, ouvi sua voz doce e carinhosa:
— Não se agaste comigo!
Voltei-me; ela sorriu a dois passos de mim, e com uma expressão suplicante, como de quem pedisse perdão.
— Acabemos com isso, Lúcia. Sabes o que me traz à tua casa: se te desagrado por qualquer motivo, dize francamente, que eu tomo o meu chapéu e não te aborrecerei mais. Se pensas que valho tanto como os outros, não percas o tempo a fingir o que não és. Esta comédia de amor pode divertir os mocinhos de dezoito anos e os velhos de cinquenta; mas afianço-te que não lhe acho a menor graça.
— Não seja tão injusto! Em que lhe pareço fingida? Já me perguntou alguma coisa que eu lhe negasse? Já me recusei a um pedido seu?
— Entretanto, te ofendeste com uma simples carícia!
— Não me ofendi; e a prova é que não dei sinal de desagrado, nem conservo o menor ressentimento. Não me conhece!... Sei o que valho, e não sou capaz de iludir a ninguém, muito menos ao senhor.
— Mas, há pouco, o que significavam essas lágrimas?
— Ah, não repare! Sofro do coração; às vezes sobe-me o sangue à cabeça, fico muito pálida, e sinto uma dor aguda que me arranca lágrimas dos olhos!... Não é nada; passa-me logo. Já passou! concluiu com um sorriso dorido.
— É diferente; desculpa. Incomodava-me essa ideia de pensares que estava disposto a fazer-te a corte. Seria soberanamente ridículo para nós ambos.
— Decerto!
Lúcia acompanhou estas duas palavras com um riso estridente e um olhar que ainda vejo brilhar nas sombras de minhas recordações: olhar vivo e cintilante, que luziu como as chispas do brilhante ferido pela réstia da luz, e veio bater-me em cheio na face, cobrindo-me com o mais agro desprezo que pode estilar um coração de mulher.
Dirigiu-se a uma porta lateral, e fazendo correr com um movimento brusco a cortina de seda, desvendou de relance uma alcova elegante e primorosamente ornada. Então, voltou-se para mim com o riso nos lábios, e de um gesto faceiro da mão convidou-me a entrar.
(...)
Era outra mulher.
(...)
Saí alucinado!
(...)
Ao retirar-me ia segunda vez levar a mão à carteira, quando o olhar de Lúcia correu-me de vergonha. Entretanto ela, abatida ainda, porém calma, apertava-me a mão por despedida. Que magia tinham aqueles olhos fúlgidos, quando um sentimento forte lhes toldava a doce serenidade!
Conto-lhe estes fatos, como se escrevesse no dia em que eles sucederam, ignorando o seu futuro; entretanto, talvez que, apesar disto, compreenda as palavras equívocas e as causas ocultas que naquela ocasião resistiram à minha perspicácia.
(...)
ALENCAR, José de. Lucíola. 5 ed. São Paulo: FTD, 1999, p.23-28. Texto adaptado.
DISCUTINDO O TEXTO...
6 - A Prosa Romântica faz uso de vários adjetivos para caracterizar e demonstras os sentimentos dos personagens: Selecione no texto as palavras que exercem essa função e dê o significado delas:
7- Classifique o tipo de prosa romântica nos fragmentos anteriores e justifique sua afirmativa:
8- Qual motivo leva Paulo a se irritar com Lúcia?
9- Qual o motivo da aflição de Lúcia?
10- Há duas personalidades de Lúcia evidenciadas no fragmento. Comente:
11- Por que Paulo sente-se constrangido ao pegar a carteira?
TEXTO III
O capítulo em destaque trata da fase em que Lúcia fica doente. Depois de saber que está grávida de Paulo, ela se sente em pecado, como se não pudesse viver o seu amor, pois havia sido cortesã. Há um conflito entre o espírito e a carne, que impede a felicidade da jovem, tornando o amor impossível de ser vivido na realidade e concretizável somente no plano espiritual. Devido à gravidade de seu estado de saúde, a personagem, muito enfraquecida, morre. Nesse momento, seu corpo é purificado pelo beijo de Paulo. Reflita sobre o conflito entre carne e espírito de Lúcia, lendo os trechos do quadro abaixo para responder às perguntas.
DOIS MOMENTOS DE LÚCIA
MOMENTO I
CULPA EM VIDA
Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca e vivace expansão de saúde desaparecera sob uma langue morbidez que a desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns laivos melancólicos, que me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente e longo; então, ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto me inquietava; atribuindo a sua mudança a algum pesar oculto, a tinha interrogado, suplicando-lhe que me confiasse as mágoas que a afligiam.
MOMENTO II
DECLARAÇÃO DE AMOR ANTES DA MORTE
E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de carícias. Bebendo o pranto que corria abundante de meus olhos:
— Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria esse bálsamo celeste, meu amigo!
Eu soluçava como uma criança.
— Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um dia tua noiva! Oh! Agora posso te confessar sem receio. Nesta hora não se mente. Eu te amei desde o momento em que te vi! Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade.
A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos devem ressoar aos espíritos celestes.
— Nunca te disse que te amava, Paulo!
— Mas eu sabia, e era feliz!
— Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu! E, contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro.
A. Os sentimentos de Lúcia de introspecção, amor e tédio, típicos do Romantismo, estão intimamente relacionados à sensação de pecado da protagonista. Compare esses sentimentos de Lúcia com as suas confissões antes da morte.
B. O Romantismo é uma estética que refletiu os valores e a moral da burguesia. A partir disso, comente o sentido da morte da protagonista dentro da narrativa.
DA LITERATURA PARA A VIDA...
- Elabore uma crítica sobre o autor José de Alencar e sua postura ao retratar Lúcia como uma mulher, que por ter sido uma cortesã, não merece viver um amor pleno e realizado.
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