10 outubro 2019

Análise do conto - A caçada - Lygia Fagundes Telles


A caçada 
Neste conto, a personagem não entende sua fascinação por uma tapeçaria de uma loja de antiguidades e muito menos, a sensação de familiaridade que tem com cena retratada. 

Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
— Parece que hoje está mais nítida…(...)
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?…
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. (...)
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! (...)
Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde… Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta…(...)
E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira… “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro? (...)
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina.(...)
“Que loucura!… E não estou louco”, concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil.(...)
Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão.(...)
Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!
Encontrou a velha na porta da loja.(...)
- Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho…(...)
“Conheço o caminho” — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. (...)
Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático.(...)
Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?… Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.
Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!
“Não…” – gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.


QUESTÕES:

1 - O protagonista do conto se impressiona com a cena que vê na tapeçaria. Que cena é essa?
2- À medida que o conto se desenrola , a cena vai ganhando contornos mais nítidos para o protagonista e suas dúvidas aumentam. O que faz com que fortaleça nele a impressão de já ter participado da cena?
3- Que aspectos o texto ressalta daquilo que o protagonista vê retratado na touceira onde estaria escondida a caça?
4- Não conseguindo se livrar das imagens da tapeçaria e das sensações que ela provoca, o protagonista retorna à loja, como já tinha feito outras vezes. Qual o seu objetivo ao retornar?
5- O protagonista de "A Caçada" tem caráter do indivíduo pós-moderno: solitário, inseguro, não tem certeza em que pode se apoiar, não sabe se é caça ou caçador, o produto ou o consumidor. A vida causa-lhe medo, pois não sabe qual o seu papel. Relacione esse estado de espírito às linhas do tempo das tendências contemporâneas e a sua própria experiência como indivíduo do século XXI.

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