A caçada
Neste conto, a personagem não entende sua fascinação por uma tapeçaria de uma loja de antiguidades e muito menos, a sensação de familiaridade que tem com cena retratada.
Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda
a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
— Já vi que o senhor se
interessa mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a
tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
— Parece que hoje está mais
nítida…(...)
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu
Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?…
Era uma caçada. No primeiro
plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa.
Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do
bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um
esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta
como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça
levantasse para desferir-lhe a seta. (...)
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do
sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque,
esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! (...)
Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo
vapor que baixava denso do céu verde… Ou subia do chão? O caçador de barba
encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou
o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma
personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida.
Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas,
através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se
daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo.
Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta…(...)
E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as
antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro
original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas
minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba
esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira… “Mas se detesto
caçadas! Por que tenho que estar aí dentro? (...)
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos.
Parou meio ofegante na esquina.(...)
“Que loucura!… E não estou louco”, concluiu num sorriso
desamparado. Seria uma solução fácil.(...)
Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de
olhos escancarados, fundidos na escuridão.(...)
Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo
detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano
sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!
Encontrou a velha na porta da loja.(...)
- Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho…(...)
“Conheço o caminho” — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis.
Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha
aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só
a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo
com suas manchas esverdinhadas. (...)
Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava
dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em
redor, tudo parado. Estático.(...)
Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas
que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou
sendo caçado. Ou sendo caçado?… Comprimiu as palmas das mãos contra a cara
esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço.
Vertia sangue o lábio gretado.
Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o
assobio da seta varando a folhagem, a dor!
“Não…” – gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E
rolou encolhido, as mãos apertando o coração.
QUESTÕES:
1 - O protagonista do conto se impressiona com a cena que vê na tapeçaria. Que cena é essa?
2- À medida que o conto se desenrola , a cena vai ganhando contornos mais nítidos para o protagonista e suas dúvidas aumentam. O que faz com que fortaleça nele a impressão de já ter participado da cena?
3- Que aspectos o texto ressalta daquilo que o protagonista vê retratado na touceira onde estaria escondida a caça?
4- Não conseguindo se livrar das imagens da tapeçaria e das sensações que ela provoca, o protagonista retorna à loja, como já tinha feito outras vezes. Qual o seu objetivo ao retornar?
5- O protagonista de "A Caçada" tem caráter do indivíduo pós-moderno: solitário, inseguro, não tem certeza em que pode se apoiar, não sabe se é caça ou caçador, o produto ou o consumidor. A vida causa-lhe medo, pois não sabe qual o seu papel. Relacione esse estado de espírito às linhas do tempo das tendências contemporâneas e a sua própria experiência como indivíduo do século XXI.
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